domingo, 16 de dezembro de 2012


Vestibular ou avaliação? Enem não serve a dois senhores

MEC estuda atribuir à prova a dupla missão, mas educadores alertam: é praticamente impossível que exame atenda a objetivos tão distintos

Lecticia Maggi
Estudantes antes do segundo dia de provas do Enem na Unip Vergueiro, em São Paulo
Estudantes antes do segundo dia de provas do Enem na Unip Vergueiro, em São Paulo - Ivan Pacheco
Nascido em 1998 como ferramenta de avaliação do desempenho dos alunos do ensino médio, o Enem foi transformado em vestibular das universidades federais em 2009, papel mantido até hoje. Está em estudo no Ministério da Educação uma proposta que pretende atribuir à prova as duas missões. A ideia é substituir a Avaliação Nacional da Educação Básica (Aneb), que apura o desempenho do ciclo médio, pelo resultado obtido pelos estudantes no Enem para efeito do cálculo do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) – indicador da qualidade do ensino nacional. A função de selecionar candidatos para universidades seguiria intacta. Educadores ouvidos pelo site de VEJA, contudo, fazem um alerta: é praticamente impossível que a mesma prova atenda a dois objetivos tão distintos. "O Enem não pode ser tudo. Não há qualquer experiência internacional nesse sentido", diz Maria Helena Guimarães, presidente da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e que, entre 1995 e 2002, presidiu o Inep, autarquia do MEC responsável pelo Enem.
Segundo os especialistas, a impossibilidade de o Enem cumprir simultaneamente e com louvor ambas as funções decorre da natureza distinta das duas provas: as que avaliam a qualidade do ensino e as que selecionam alunos. A primeira busca produzir um diagnóstico a partir do conhecimento de estudantes, escolas ou mesmo de uma rede de educação; a segunda pretende hierarquizar candidatos segundo seu desempenho e, assim, apontar os melhores para uma universidade, por exemplo. Com naturezas tão distintas, as duas provas só poderiam mesmo abordar a grade curricular de maneira diversa. A prova de avaliação tende a explorar todos os conteúdos que os estudantes viram no ciclo escolar, visando aferir o que aprenderam de cada matéria. Já a prova de seleção elege os tópicos segundo seu interesse: seu objetivo não é avaliar o universo de alunos, mas revelar competências e apontar quem são os melhores candidatos. "No exame de seleção você avalia bem os melhores alunos, mas não os demais", resume Ruben Klein, especialista em estatística e consultor da Fundação Cesgranrio.

Essa divergência entre os exames faz toda a diferença. O Enem pode até escolher bem os 240.000 alunos das federais, mas acaba não avaliando a contento os quase 5 milhões de participantes do exame. "A prova de seleção fornece uma avaliação precária do sistema de ensino. Por meio dela, é possível constatar, por exemplo, que os alunos não estão aprendendo o que deveriam, mas é impossível determinar exatamente quais são as falhas deles, porque esse tipo de prova não explora toda a grade curricular", diz José Francisco Soares, coordenador do Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais (Game) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A conclusão de Soares põe em xeque a pretenção do MEC de produzir um diagnóstico do ensino médio a partir do Enem: "A partir de uma prova de seleção, não é possível fazer nenhuma inferência ou recomendação pedagógica." Nilson Machado, professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos criadores do Enem, complementa: "O exame hoje é um vestibular, o maior do país, e não olha para os problemas da educação básica."
O Enem pode não ter se tornado ainda ferramenta oficial de avaliação do ensino, mas já assumiu missões adicionais à de selecionar alunos de universidades. Além apontar os melhores candidatos para 90 instituições de ensino superior públicas (algumas delas de primeiro nível, como UFRJ, Unifesp e UFSCar) e outras tantas privadas, a prova seleciona estudantes para programas de bolsas e financiamento do governo federal (ProUni e Fies) e concede certificação do ensino médio a participantes com 18 anos ou mais que obtiverem uma nota mínima – em 2012, mais de 600.000 participaram da prova com essa finalidade. Novamente, a ambivalência chama a atenção de Francisco Soares: "Selecionar alunos para um curso como medicina, por exemplo, é tarefa para uma prova capaz de distinguir candidatos de alto desempenho. Ocorre que os que buscam o diploma do ensino médio estão no outro extremo. Uma prova não consegue desempenhar bem as duas funções."

Desde 1995, a qualidade do ciclo médio é verificada por uma mesma avaliação que, em 2005, ganhou o nome de Aneb. Ao contrário do que ocorre na avaliação da rede fundamental, feita pela Prova Brasil, em que todas as escolas públicas com mais de 20 alunos são convocadas para a prova, a aferição do ensino médio é apenas amostral. A escolha das unidades é feita por sorteio, obedecendo critérios que assegurem a representatividade de escolas públicas, privadas, da capital e do interior no universo nacional. O resultado mostra o desempenho dos estados e de capitais, mas não detalha notas do municípios e escolas. Esse foi o principal argumento do ministro Aloizio Mercadante para defender a adoção do Enem como avaliação do ciclo médio. É um argumento respeitável. Segundo Ruben Klein, do Cesgranrio, tornar a avaliação universal, ao invés de amostral, é mesmo um objetivo futuro. "Quando temos resultados de cada cidade, secretários de educação e prefeitos passam a ser mais cobrados por bons resultados", diz.

Isso não significa, contudo, que a tarefa cabe ao Enem. Ao contrário. Melhor seria, apostam os educadores, verificar a possibilidade de expandir o Aneb a todas as escolas. O exame produz resultados considerados confiáveis e estáveis, que permitem comparação entre as edições, ano após ano. "Não devemos tornar obrigatória uma prova como o Enem, que agora é organizada a partir do que as universidades querem avaliar em seus processos de seleção. O ensino médio tem uma finalidade própria, não é um ritual de passagem para o ensino superior, um curso preparatório", afirma Maria Helena Guimarães, da Fundação Seade.
Acrescente-se a isso o fato de que o próprio Enem acumula suas distorções no tocante a seu público, como fica claro na seguinte comparação: embora 87,2% dos alunos do ensino médio frequentem escolas públicas (dados do Pnad 2011), a taxa média de participação de estudantes das redes mantidas por governos no Enem é substancialmente inferior à registrada na rede privada: 38,07% ante 70,4%. Outro ponto-chave é a questão da comparabilidade das provas de um ano para outro, uma questão vital quando se pretende analisar a evolução (ou a involução) do ensino. "O Enem é uma prova de seleção: qualquer uso além desse é insustentável, estatística e pedagogicamente", diz Gisele Gama Andrade, pós-doutora em avaliação educacional.
VEJA

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